sábado, 31 de maio de 2008

O silêncio de 1000 palavras

Curso “Formação de Escritores”
Aula de Encerramento do I Módulo
Texto Apresentado:

O Silêncio de 1000 palavras

O sol brilhava naquela manhã como nunca brilhara antes. O céu parecia estar se abrindo para receber as mais nobres almas . Aurélia segue em direção ao armário da cozinha, apanha uma toalha de linho branco com suaves bordados coloridos.Tons muito claros de azul, rosa e verde já desbotados pelo tempo. Prepara uma mesa no jardim e coloca a toalha.

Dispõe sobre ela um pequeno arranjo de flores campestres e espalha em seu redor, algumas cestas de pães e geléias. O antigo aparelho de chá, de beleza incomum, completa a decoração. Apesar do ambiente primaveril Aurélia está melancolicamente perturbada. Senta-se à mesa, coloca algumas gotas de barbiturico no chá. Espera esfriar. Enquanto isso, liga um pequeno gravador e diz: estou muito cansada!.

Suas recordações começam a ser registradas naquele aparelho como se fosse a única forma de deixar um recado a alguém.Olhar distante, voz fraca... quase sussurrando registra cada segundo que sua memória - cúmplice de toda a vida - lhe traz à tona:

...( )“Dezembro de 1917, muitas famílias oriundas da Itália, desembarcam no porto de Santos. Com os corações sangrando de marcas provocadas pela guerra, mas cheios de esperança, pisam no pedacinho de chão que agora é deles também .A sensação de paz e liberdade toca a todos intensamente, mas em especial a minha família (e eu ainda dormia no ventre de minha mãe).

O serviço de imigração , logo dá destino àquelas famílias entregando-as aos cuidados de seus novos patrões, a maioria, latifundiários do interior do estado.

Ao contrário de outras famílias, a minha ficara na capital para trabalhar no comércio e nas residências que os fazendeiros mantinham por aqui.”

Minha mãe dizia:”apesar de haver um clima de tristeza no ar, por causa da guerra, aqui ainda vive-se melhor do que na Europa. A comida não é farta, mas o povo tem o feijão para colocar no prato. E pode andar livremente pelas ruas”.

No ano seguinte, fatos importantes marcariam nossas vidas. Agora, acontecimentos de alegria e de esperança no futuro. Dias após o meu o nascimento, todos saíram às ruas comemorando o término da guerra.

Durante alguns anos permanecemos amparados por nossos patrões e nada nos faltou. Minhas irmãs e eu, estudávamos e ajudávamos nossos pais no trabalho da casa e também no comércio. Na escola, brincávamos em chão de terra batida. Em dias de muito sol, nossas brincadeiras provocavam um enorme nevoeiro que subia em direção ao céu.

Dizíamos que eram nuvens de poeira levando pedidos de “paz para o mundo” e que Deus nos enviaria uma resposta assim que recebesse aqueles pedidos.Ouvia minha mãe sempre dizendo sobre os horrores da guerra e das lembranças da Itália.E eu, até nas brincadeiras, pedia pela paz.

Queda da bolsa em NY. Fazendeiros perderam tudo que tinham. Não foi diferente por aqui e atingiu também os nossos patrões provocando-lhes a falência. Desamparados, fomos morar em cortiços improvisados no bairro da Mooca, onde se formavam pequenas colônias italianas. A vida ali se mostrava muito difícil, mas com a união de todos , tudo se tornava mais suave. Era uma vila em que não havia tristeza. Quando alguém na vizinhança adoecia ou perdia o emprego, todos ajudavam com alimento e roupas.Aos domingos fazíamos uma grande mesa no quintal e cada um trazia suas travessas de molho, macarronada, pães e vinhos. Dez anos se passaram. Em casa todos trabalhavam, mas o dinheiro mal pagava alimentação.Era minha vez de ajudar e fui trabalhar numa fábrica de biscoitos. Exatos doze meses e uma nova crise mundial dava sinais de vida.Fui demitida. Muitos perderam seus empregos nessa época. Sem emprego e sem condições de ajudar no sustento da casa, decidi me casar. Pensava que agindo assim a situação melhoraria. Casei-me e logo engravidei. Nasce Francisco.

Anos de grandes tensões sociais no cenário político mundial: novamente o mundo sofria as pressões da guerra.

Meus pais já haviam passado por tal situação e fora muito difícil ultrapassar mais esta. As desilusões e o sofrimento com a perda de parentes na Itália, dentre eles minhas irmãs- que para lá tinham retornado- foram dizimando-os lentamente aqui no Brasil. Em 1948 uma pneumonia tira minha mãe do nosso convívio . Esta perda agrava também o estado de saúde de meu pai que no ano seguinte se despede para não mais voltar. Amélia, a irmã mais velha, em virtude da idade avançada e sem filhos para ampará-la, pede para ser internada em um asilo. Nunca mais a vi.

O golpe derrubou-me. Morri. Renasci. Sonhava agora com netos e velhice tranqüila.

Francisco, então com 40 anos, começa sua militância pela democracia.

Nessa ocasião, por motivos até hoje não esclarecidos, meu marido sofre um “acidente” e é hospitalizado. Dias depois morre. Sozinha, minhas forças diminuíam dia após dia.

Minha grande preocupação era Francisco, que enfrentava perseguições, exílios e prisões.

No entanto é acometido por um câncer que o leva a óbito, tirando-lhe o sabor da vitória pela democracia que viria com as “Diretas já”. Desta vez não suportando as pressões , pedi a Deus que me levasse também. Pensei em fazê-lo por meios próprios, mas...

Anos após a morte de Francisco, na casa amarela ao lado da minha , muda-se dona Benedita, senhora de 90 anos, sem família , com uma enorme dificuldade de locomoção – era Parkinson.

Além disso, tinha o rosto desfigurado devido a queimaduras recentes e sofria de amnésia.

Apesar dos meus 80 anos, reuni forças e sai em busca de auxílio médico e assistência social para a recém-chegada vizinha . Um hospital da cidade disponibiliza, não só o que fora solicitado, como também visitas semanais a Benedita.

Voltando o olhar à mesa Aurélia diz:

- “Missão cumprida!”.

E desliga o gravador.

Leva à boca, o chá envenenado.

Neste momento Benedita invade o jardim, com um papel nas mãos, dizendo:

- Aurélia, encontrei isto em meus documentos, não sei do que se trata pois não enxergo mais.

Ao ler o papel Aurélia descobre: Benedita era na verdade, Amélia, a irmã que deixara no asilo.

Sorriu...e as lágrimas calaram sua voz!

5 comentários:

Sady Folch disse...

Caríssima Libélula, vejo esse texto conseguindo enredo para uma incursão no cinema, ao modo europeu...e você, bom, você sempre primando por um estilo refinado.
Abraços
Sady

Doraci Lima Pereira. disse...

Libélula,achei o seu texto, simplesmente, magnífico.Embora, nunca tive dúvidas do seu talento...assim, como não tenho dúvidas,que muitos outros iguais a esse ainda virão.
Abrços e sucesso.
Dora.

Bruno Cobbi disse...

Lu, sou suspeito. Li de novo e me encatei de novo. Amei esse seu jeito Lovecraft de ser!

Luz, guerreira!

Leticia Rosa de Faria disse...

Noooooooooooooooossa!!!

Que demais.... me arrepiei!!!

Tia! Fantástico!

Quando crescer quero ser igual à você!!!hahaha

Vc fez a gente viajar em acontecimentos históricos...!!!!

Amo vc!
Beijos

Eduardo disse...

Um ecanto de texto LU. Como em quase tudo o que leio encontro sempre sobre o que meditar, especialmente sobre as tramas do carma.